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Foto do escritorSabrina Jacob

A moda está com os “crias”

Atualizado: 3 de jul.

Projetos surgidos na periferia apostam em sustentabilidade e valorização das tradições locais


Betto Gomes e Matheus Santos são dois designers de moda cariocas, periféricos, que acreditam no empoderamento da favela e na preservação do meio ambiente através da moda. Betto Gomes, da comunidade Vila do João no Complexo da Maré, produz roupas utilizando tecidos excedentes de outras marcas, transformando o que seria lixo em peças exclusivas. Sua coleção "Maré de Peixe" celebra a cultura dos pescadores do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.


Enquanto Betto dá nova vida a peças já existentes,  Matheus Santos, de Duque de Caxias, atribui  novo significado a essas roupas. O estilista duquecaxiense é fundador do VestCria, um brechó que tem alcançado conquistas. A loja seleciona roupas usadas com uma curadoria cuidadosa, dando novas essências criativas às peças que perderam seu valor para os antigos donos. Este ano, o empreendimento de Matheus foi utilizado para o styling de Janice Mascarenhas, que vestiu Milton Nascimento e Esperanza Spalding, vencedora de cinco Grammys, no último álbum de estúdio de Milton.


A favela está consciente e inserida na moda sustentável, assim como grandes marcas, como Farm. Porém, é pouco discutido como essa prática sempre esteve presente na comunidade e como os chamados "crias", ou seja, moradores dessas comunidades, são invisibilizados no reconhecimento da moda sustentável.


Pioneiros invisíveis


A moda sustentável pode parecer distante da realidade do cidadão comum devido a questões financeiras. Segundo uma pesquisa do Instituto Akatu com a GlobeScan, 57% dos brasileiros afirmam que viver de forma mais sustentável é “muito caro”. Contudo, para Aysha Olive, designer e estudante de moda, a prática de dar novos significados a roupas usadas é antiga entre os "crias". “As pessoas tendem a acreditar que a moda sustentável é inacessível, pois essa ‘estética sustentável’ promovida nas redes sociais difere muito da realidade das pessoas periféricas”, afirma Aysha.


Caroline Diniz, historiadora, explica que essa visão surgiu porque marcas com preocupações ambientais costumam ser caras devido à mão de obra melhor remunerada e ao processo de produção mais lento e cuidadoso. No entanto, Caroline defende que a sustentabilidade também está presente na moda circular, algo comum nas favelas. O ato de herdar peças de familiares ou dividir roupas com amigas, práticas comuns das comunidades periféricas, são formas de praticar moda sustentável.


Aysha relembra que a sustentabilidade sempre fez parte de sua vida, mesmo sem perceber. “Quando pequena, lembro-me de deitar em colchas de retalho que a minha bisavó fazia a partir de resíduos têxteis de fábricas, algo que hoje conhecemos como ‘patchwork’.” Para Aysha, a moda sustentável vai além das técnicas promovidas pela elite, como "upcycling" (renovação de roupas) e "recycling" (reciclagem de itens). Aos 10 anos, Aysha já sabia que precisava cuidar das peças que ganhava, pois seriam usadas por seus primos no futuro. “A descoberta do brechó nunca existiu para mim, pois sempre vi meus familiares consumindo em brechós e muitas vezes presenteando com peças de brechó”, relata.


A SPFW57, que ocorreu entre  9 e 14 de abril, levantou, fortemente, a bandeira da sustentabilidade evento é a sustentabilidade. Foto: Cottonbron Studio/Pexels

Caroline Diniz defende que negros e pobres sempre estiveram à frente da sustentabilidade, tanto em atividades informais de poupança quanto no empreendedorismo, como ao abrir brechós. “O upcycling sempre existiu dentro da periferia; as pessoas sempre transformaram peças, rasgaram calças e estilizaram. É uma prática antiga, mas não tinha esses nomes bonitos e americanizados”, explica.


Com o aumento da conscientização socioambiental, que levantou pautas como inclusão e diversidade, novos artistas periféricos ganharam visibilidade, permitindo que a favela tivesse a devida credibilidade na moda sustentável. “Hoje, em uma Fashion Week, não há mais condições de ter apenas marcas brancas, elitizadas e sem consciência ambiental, como havia anos atrás, porque as pessoas vão cobrar”, exemplifica Caroline.


Matheus Santos e Betto Gomes trabalham para que a periferia seja reconhecida como uma potência na moda. Com o VestCria, Matheus traz empoderamento de forma acessível, enquanto Betto valoriza e dá visibilidade à mão de obra da favela através de seu atelier. Ambos oferecem uma nova visão do que é ser "favelado", termo frequentemente mal visto socialmente.


Muito além de um simples brechó


Iniciando sua trajetória pela necessidade de pagar a faculdade de moda, Matheus Santos decidiu, em 2014, se reunir com duas amigas para aproveitar a tendência dos brechós. Usando a dificuldade como motivação, começaram garimpando em igrejas e centros espíritas, tirando fotos nas ruas e supermercados, incorporando sua visão de moda nas produções. 


Posteriormente, Matheus sentiu a necessidade de iniciar seu próprio empreendimento, fundando o VestCria. Com venda e aluguel de roupas usadas, a marca oferece produtos garimpados a preços diversos, permitindo acessibilidade para todas as pessoas que se identificam com a visão, a modelagem e a ideologia do VestCria.


Usando o brechó como ferramenta de empoderamento, Matheus permite que seus consumidores se expressem e resgatem sua autoestima através das peças vendidas na loja. “O VestCria está aqui para mostrar que todos podem estar bem vestidos. As pessoas querem consumir o que está na moda em Nova York, querem usar o prata, porque é a cor do renaissance da Beyoncé, e eu mostro que é possível usar isso através do garimpo, no valor que você pode pagar.”


Vendendo peças como um relógio da Gucci em valores muito mais acessíveis, o grande objetivo da marca do duquecaxiense é acolher as classes mais marginalizadas que estão ascendendo socialmente e não se sentem pertencentes a esses novos locais. “Estamos em um momento em que vemos várias pessoas crescendo, virando influenciadores, viajando pelo mundo e afins. Eu quero permitir que, com o VestCria, elas se sintam especiais nesses novos ambientes, que possam vestir um Gucci tal como uma pessoa da elite.”


Betto Gomes: Empoderamento através da moda


Filho de paraibanos que se mudaram para a Maré em busca de novas oportunidades, Betto Gomes é um morador da Maré que foi descoberto no reality Estilista Revelação, no programa Xou da Xuxa, em 2011. Esse programa lhe deu visibilidade nacional e possibilitou, futuramente, abrir um ateliê no centro da cidade. 


Conhecido como o "estilista da Maré", Betto decidiu resgatar suas origens trazendo seu ateliê, anteriormente localizado no Centro, de volta para a Maré. Determinado a causar um impacto socioeconômico positivo, Betto resolveu homenagear sua comunidade com uma trilogia de coleções de verão, a que ele mais aprecia desenvolver.


A coleção, dividida em três ciclos, começou em 2022, inspirada nas histórias contadas por sua mãe. Buscando resgatar as origens da Maré, a narrativa do primeiro acervo que foi chamada de “Maré Alta” centrou-se na jornada das primeiras pessoas que se fixaram no local e ergueram as palafitas. 


A segunda coleção, "Maré de Peixe" (2023), contou a história da comunidade Kelson, onde há uma colônia de pescadores locais que até hoje resistem em um trabalho desvalorizado. Betto realizou uma extensa pesquisa para entender e retratar o dia a dia desses trabalhadores que entram na Baía de Guanabara e vão mar adentro para pescar, sustentando seu ofício e alimentação. 


Com produção localizada na Vila São João, ele busca humanizar os trabalhadores, sempre reconhecendo e capacitando ao máximo seus profissionais. “Ser sustentável vai além de reduzir lixo têxtil. É preservar a espécie humana, respeitar o gênero e a raça”, afirma Betto. 

Pensando no futuro, Betto compartilha um sonho: “Quero ampliar o ateliê para um segundo andar, para ter mais salas de costura e formar mais estilistas, costureiras, tornando o espaço uma grande potência local.” Betto acredita ser uma fonte de inspiração para os moradores locais. Ele se sente feliz ao ver que seu trabalho promove esperança no Complexo da Maré, sendo um exemplo de realização de sonhos.



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