Abram alas que eu quero passar
- Luciano Alves
- 7 de abr.
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Atualizado: 7 de abr.
Comissões de frente da série ouro do carnaval carioca enfrentam desafios para colocar sua arte na avenida

Quando os portões da Marquês de Sapucaí se abrem, a sirene toca e o cronômetro começa a contar, o coreógrafo Jardel Lemos, 37 anos, olha para os integrantes da comissão de frente da escola Botafogo Samba Clube e começa a chorar. O desfile é o resultado de um trabalho que começou seis meses antes, quando pensou em contar a história do bairro e do nome Botafogo por meio de jogadores de futebol. “Consegui dar vida àquela ideia, é como se fosse um filho sendo concebido”, diz ele, emocionado ao lembrar as dificuldades no percurso. “É aqui que eu me sinto realmente um artista.”
As comissões de frente se transformaram em uma batalha particular dentro dos desfiles da Marquês de Sapucaí. Misturam história, acrobacias, magia e muito, muito ensaio. Mas um especialista como Jardel sabe que, para além do espetáculo que o público gosta de ver, a comissão de frente tem funções específicas. A primeira função é saudar o público e chamá-lo para a cena. A segunda é reverenciar o jurado, pois “é ele quem está te julgando, te dando nota”. E a terceira é sintetizar o desfile dentro do enredo.
O coreógrafo acrescenta que a comissão de frente quesito que mais muda com o tempo. Ele lembra que, na década de 80, essas alas que abrem os desfiles traziam a velha guarda, porque eram as pessoas que guardavam a memória da escola, e, portanto, havia o entendimento de que deveriam vir na frente. Alex de Souza, carnavalesco que em 2025 foi responsável pela Botafogo Samba Clube, mas que já passou por escolas como Vila Isabel, Salgueiro, União da Ilha do Governador e Mocidade, afirma que, nesta época, os carnavalescos eram os responsáveis pela concepção, figurinos, adereços e elementos alegóricos das comissões.
Nas décadas de 90 e 2000, lembra Jardel, o coreógrafo Fábio de Melo, da Imperatriz Leopoldinense, marcou época ao usar nas comissões grandes figurinos e adereços. A ideia se espalhou. Com o sucesso e a exposição de alguns coreógrafos, o comando das comissões de frente passou a ser um posto cobiçado, com o status logo abaixo do dos carnavalescos, os principais criadores.
Nos anos 2010, segundo Jardel, vieram as coreografias elaboradas, e depois os grandes efeitos, que passaram a dominar as comissões até hoje. Segundo o coreógrafo, o que conta atualmente é o efeito surpresa, ou seja, o impacto causado na hora da apresentação. As comissões se tornaram um espetáculo à parte, tendo um peso muito grande. Para o carnavalesco Alex, uma grande apresentação de comissão de frente é determinante para a vitória de uma escola.
Jardel, que trabalha com carnaval desde 2007, inicialmente como bailarino e depois, a partir de 2013 como coreógrafo no Rio de Janeiro, também atua como julgador do quesito em outros estados. Em 2025, ele foi coreógrafo da Botafogo Samba Clube, mas já passou por escolas como Porto da Pedra, Império da Tijuca, Em Cima da Hora e Alegria da Zona Sul, e no grupo especial esteve à frente da Unidos da Tijuca em 2019 e 2020. Segundo ele, cada competição tem seu regulamento, então é fundamental conhecer as regras de cada uma.

Pelo regulamento da Liesa (Liga Independente das escolas de samba do Rio de Janeiro), as comissões precisam ter no mínimo dez e no máximo quinze componentes. Pode até haver um número maior de artistas, mas destes, apenas quinze devem estar aparentes para o jurado. O descumprimento penaliza a escola em meio ponto. Além disso, o regulamento proíbe que a escola desfile com componentes de comissão de frente, no todo ou em parte, que tenham participado, no mesmo ano e nas mesmas funções, de outros desfiles.
Dois meses antes do carnaval, a escola precisa entregar formulários com a descrição sequencial e os desenhos coloridos da comissão. Devem ser entregues também fichas técnicas com o currículo dos coreógrafos, a sinopse e a descrição da comissão de frente.
Ensaiei meu samba o ano inteiro
Jardel explicou que, logo após o carnaval, o carnavalesco já apresenta o enredo do ano seguinte, e então o coreógrafo começa a etapa de pesquisas, nos meses de março, abril e maio, resultando nas ideias iniciais. Ele ressaltou que alguns carnavalescos já trazem a ideia pronta, e, neste caso, cabe a ele somente executar, mas Lemos prefere a criação em conjunto, pois considera essa maneira mais eficaz para concepção artística. O carnavalesco Alex de Souza observou que, atualmente, são poucos os que assumem a função e atuam mais ativamente na abertura dos desfiles, mas acrescentou que, quando o coreógrafo permite, ele prefere participar e contribuir com o que for possível.

As audições para selecionar os componentes da comissão começam em julho e agosto. São aceitos bailarinos, atores e atrizes ou até profissionais de circo, dependendo de cada proposta. Nos meses de setembro ou outubro começam os ensaios, época que coincide com a escolha do samba-enredo da escola.
Luciano de Souza, bailarino de comissão de frente desde 2004, desfilou em 2025 pela Botafogo Samba Clube, mas já passou por escolas como Porto da Pedra, Acadêmicos de Santa Cruz, Império da Tijuca, Portela e Unidos da Tijuca. Conta que os ensaios são de madrugada, geralmente no Sambódromo e no barracão da escola. É uma rotina exaustiva, principalmente levando em conta que no dia seguinte as pessoas seguem para o trabalho . Mas diz que, a rotina é necessária, para que os componentes ganhem resistência e dominem as coreografias.

O bailarino explica que, no ensaio, são trabalhadas três coreografias, sendo uma a de avanço, que é aquela utilizada para percorrer a avenida. A segunda é a coreografia de apresentação para os jurados nas quatro cabines, que é aquela que vale a pontuação, e a terceira é uma coreografia de espera, utilizada para cortejar a apresentação do casal de mestre-sala e porta-bandeira, os quais vêm logo em seguida da comissão. Luciano ressalta que é tudo muito desafiante, mas que o esforço compensa. “O amor à dança transforma tudo, e o prazer de estar realizando a proposta que é colocada para nós, artistas, além da energia positiva que um vai passando para outro, supera todas as barreiras”, avalia.
Como coreógrafo, Jardel diz que tem muitas demandas que vão além da preparação do movimento. Fechar contratos com ateliês de figurino e maquiagem, por exemplo, também está entre as atribuições do cargo. “Carnaval é muito atípico, é uma manifestação popular diferente de todas as outras, porque acontece na rua. Então, as roupas e maquiagens têm que ser resistentes na dança em rua, não são as mesmas para estúdio ou teatro de palco italiano com ar condicionado”, afirma.
Jardel lamenta as condições precárias que as escolas da série ouro têm para realizar a fase de preparação, pois elas não dispõem dos barracões e do espaço cercado da cidade do samba. Ele afirma só poder ensaiar na Sapucaí até meia-noite, porque depois deste horário a avenida tem que ficar liberada para as escolas do grupo especial marcarem suas luzes. Então, ele diz que é obrigado a levar seus componentes para o barracão da escola, que é um local precário, sem banheiro, com chão de terra, onde tem bicho, alaga e muitas vezes fica no escuro. “Então eu já passei por situação do nosso barracão pegar fogo, alagar da água vir no joelho e a gente perder muita coisa a um mês do carnaval”, afirma.
Somado a estes problemas, Jardel também diz que tem que saber lidar com o atraso na chegada da verba para a escola, pois as autoridades só liberam o dinheiro às vezes um mês antes do carnaval, e nem sempre os ateliês contratados entendem isso. “Você tem que trabalhar com pouco e situações muito difíceis, porque a série ouro são escolas muito pobres, com subvenção pequena, e estão todas brigando por um espaço no grupo especial”, conclui.
Em relação à questão do aporte financeiro, o carnavalesco Alex de Souza diz que a comissão de frente é um dos quesitos de maior investimento, mas, segundo ele, é natural que disponha de tanta atenção dado o peso que o quesito adquiriu para a nota final ao longo do tempo.
A tristeza nem pode pensar em chegar
“É um sentimento de êxtase, uma sensação de alívio, uma adrenalina que eu acho que teriam que fazer uma pesquisa científica com nós artistas na hora da apresentação para entender o que acontece com nosso corpo”, diz Jardel, ao definir a sensação de desfilar na Marquês de Sapucaí.
Ele diz que sua comissão já vem preparada para percorrer a passarela do samba harmonicamente. Mas ele ressalta que pode acontecer algum problema com a escola, e, neste caso, ele recebe uma mensagem da harmonia e se comunica com seus componentes através de gestos, indicando que devem segurar o desfile, executando uma coreografia parados, se for o caso.
Luciano reforça a importância de todos os integrantes estarem sempre atentos aos sinais do coreógrafo e suas assistentes e jamais ultrapassá-los. “Na hora do desfile acontecem mil coisas, tem harmonia gritando no seu ouvido, tem fotógrafo passando entre a gente, tem gente querendo fazer entrevista, mas devemos ignorar todos e prestar a atenção apenas no coreógrafo.”. O bailarino reforça que, aconteça o que acontecer, o importante é manter o sorriso no rosto o tempo todo e agir com naturalidade. Além disso, ele enfatiza que é importante saber dosar a energia para conseguir chegar com o mesmo pique até o final.“A gente não pode entrar com o gás todo, tem que ir na coreografia de avanço sorrindo e deixar para explodir no jurado”, explica.
Reconhece a queda e não desanima
Jardel e Luciano gostam de relembrar experiências de carnavais passados. Em 2018, por exemplo, Jardel estava na Porto da Pedra, e na comissão cada rainha usaria uma cor diferente. Faltando um mês para o carnaval, o figurinista avisou que não tinha mais tecido de todas as cores. Jardel lembra que recebeu a notícia indo para casa e atravessou a ponte Rio-Niterói chorando, até que, no dia seguinte, lembrou que leu, na fase de pesquisas, o livro “Era de Ouro”. Então, na mesma hora pensou: “Bota todas de dourado!”.
Foi a solução que coube na época, mas foi necessário refazer toda a coreografia, pois, segundo ele, com a alteração das cores, também mudam as movimentações e dinâmicas. Além disso, também ficou comprometida a identificação de cada cantora, embora cada uma trouxesse no corpo uma faixa contendo não o nome, mas o ano em que foi coroada.
Luciano lembra que participou deste grupo interpretando o fotógrafo das rainhas. E que, apesar dos percalços, todos se surpreenderam com o resultado da comissão na avenida, pois, mesmo sendo tudo simples, sem elementos grandiosos, a interpretação de todos foi tão boa que ganhou o público: “Não teve muita dança, foi tudo interpretação das meninas, mas a gente conseguiu, de uma forma leve e simples, passar para o povo tudo que a gente queria, vimos nos olhos das pessoas que elas lembravam o que viveram naquela época”, lembra.
Jardel fala com orgulho que, naquele ano, sua comissão foi a única da Série Ouro a ganhar a nota máxima de 40 pontos. O trabalho foi o passaporte para o coreógrafo ingressar, no ano seguinte, no grupo especial, na Unidos da Tijuca.
Luciano ri ao lembrar de outra história que aconteceu quando estava desfilando na comissão da Unidos de Bangu, em 2016. Recebeu um sapato 44, quando calçava 38, e a escola, sem dinheiro, não conseguiu trocar. Na hora do desfile, colocou muitas folhas de jornal amassadas dentro do calçado, mas, diante de uma cabine dos jurados, alguém pisou nele e o sapato soltou do pé. Ele disfarçou e continuou o movimento até que, em uma das passadas, deu a sorte de encontrar o sapato e colocou discretamente no pé, sem sair do ritmo. E a escola ainda recebeu dez do avaliador.
Em 2012, num desfile na comissão de frente da Acadêmicos de Santa Cruz, os componentes representavam as ondas do rádio e usavam roupas coloridas com luzes de led cujos fios passavam por dentro do tecido. O problema é que muitos fios não tinham fita isolante, e eles passaram a avenida inteira levando choque no corpo.
Do pedaço de roupa que cai aos ferros que machucam, os imprevistos são muitos, mas nada pode abalar a apresentação da comissão. “Os imprevistos acontecem, mas a gente vai tentando fazer com que aquilo não se transforme num pesadelo. Eles precisam ser imperceptíveis para os espectadores.”, afirma o bailarino. ”A adrenalina é tanta que a gente nem sente que está ferido, e segue dançando até o final. A gente pode até morrer, mas só depois que sai da linha de chegada”, brinca Luciano.
Para tudo se acabar na quarta-feira
Quando o desfile termina, a sensação é de alívio e dever cumprido, misturado com um sentimento de êxtase. Quanto às notas dos jurados, Jardel reconhece a importância, mas diz que seu compromisso maior é com a escola e a comunidade, ou seja, quem o contratou, e não com os jurados. Até porque, segundo ele, as avaliações são muito subjetivas e costumam vir acompanhadas de justificativas evasivas.
Por falar em dever cumprido, Jardel lembra da comissão que mais se orgulhou de ter feito, na escola Em Cima da Hora, em 2014. O tema era sertões, e a comissão era composta por meninas que usavam uma meia cujo desenho remetia à seca. Elas ficavam de cabeça para baixo, levantavam as pernas e então se transformaram em galhos secos, enquanto Antônio Conselheiro passava por ali e, em seguida, no deslocamento, outro grupo de componentes se transformam em bonecos com pernas de pau, que mexiam nelas como se fossem mamulengos. Embora tenha chovido na hora do desfile, o que causou preocupação com as pernas de pau, Jardel afirma que tudo funcionou, pois, segundo ele, foi uma comissão que conseguiu sintetizar o enredo de uma forma inteligente, com uma sacada simples e de fácil entendimento pelo público. “Este é o segredo, as coisas se resolveram bem na cena de uma forma poética”, afirma.
Ao lembrar uma comissão icônica feita por outros colegas, Jardel citou a recente apresentação feita pela Acadêmicos do Grande Rio em 2024. Segundo ele, foi arrebatador, pois os coreógrafos conseguiram fazer algo que nunca tinha sido feito e deu certo. Ele descreve dizendo que toda a Sapucaí foi apagada e o público recebeu lanternas, e então a onça ia para cima da plateia e trazia o público para o espetáculo, fazendo com que o grande efeito fosse visto de baixo para cima, coisa que a televisão não consegue mostrar. “Então era o público dentro do público, foi algo assim que não tem como explicar”, afirmou.

Alex acrescenta que este ineditismo é fundamental, além da emoção e da apresentação impecável. Jardel explica que é possível esperar, a cada ano, por mais inovações e novidades até antes impensáveis, pois quando se trata de comissão de frente, nem mesmo o céu é o limite.
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