Sem autorização da Anvisa para prescrever derivados da cannabis, médicos veterinários sofrem com insegurança jurídica; conselho recomenda buscar autorização judicial
Lessie é uma cadela dachshund, de 17 anos, diagnosticada com Alzheimer e doença articular degenerativa, o que lhe causa múltiplas dores. Nina, uma spitz de 2 anos, teve uma parada cardiorrespiratória durante uma cirurgia na patela, o ossinho da frente do joelho, e ficou com problemas neurológicos graves. As duas são tratadas com substâncias específicas derivadas da planta Cannabis sativa, já receitada para diversos pacientes no Brasil por suas propriedades anti-inflamatórias, analgésicas, ansiolíticas e antipsicóticas.
Mas, apesar da literatura médica veterinária já indicar benefícios medicinais do uso de derivados da cannabis em animais, a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) define que a prescrição desses produtos é "restrita aos profissionais médicos legalmente habilitados pelo Conselho Federal de Medicina”. Com isso, veterinários não estão legalmente autorizados a receitar aos pets derivados da cannabis para uso medicinal, o que os deixa em situação de insegurança jurídica caso optem por uma prescrição desse tipo.
Diante desse cenário, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), ciente da falta de legislação específica para uso de produtos com canabidiol em animais, emitiu uma nota com a seguinte orientação: “Antes de prescrever o tratamento com seus derivados, o médico-veterinário delimite de forma objetiva o diagnóstico do paciente, leve o caso ao Judiciário e obtenha autorização judicial para realizar a prescrição necessária ao tratamento, garantindo a segurança jurídica do exercício profissional da Medicina Veterinária.”
Apesar de ser o caminho juridicamente correto, este é praticamente impossível de ser praticado, de acordo com os profissionais que atuam na área. Alex Favoretti, médico veterinário e especialista em Cannabis medicinal, explica que a judicialização é um processo muito lento e muito caro, que os tutores dos animais não estão dispostos a encarar. “O processo que o CRMV orienta é impraticável, até porque a cannabis é utilizada como última tentativa de vida do animal, e o tempo de ação é um fator crucial.”, afirma Favoretti.
As indicações terapêuticas do uso do canabidiol para animais são diversas e variam entre tratamentos comportamentais, para conter ansiedade de cães e gatos, até dor crônica, doenças crônicas imunológicas, câncer e epilepsia. No caso da cadelinha Lessie, que já estava muito debilitada e sem andar com firmeza, foram três meses até encontrar a dose ideal da medicação, associada ao tratamento de reabilitação e alopático proposto pelo veterinário. Com isso, ela teria maior qualidade de vida, com menos crises decorrentes do Alzheimer.
Beatriz Costa, de 32 anos, tutora de Nina, a outra paciente que usa o canabidiol, conta que a cachorrinha perdeu completamente os sentidos depois da cirurgia. “Quando ela voltou para casa do hospital, ainda fazia movimentos de pedalada, latia tanto que os vizinho que os vizinhos fizeram uma denúncia porque achavam que estávamos maltratando ela”, conta. Com o barulho, ficava quase insuportável dormir ou ficar em casa tranquilamente com ela por perto. Depois que a família introduziu, com prescrição médica, o óleo com CBD (canabidiol), a vida passou a ser diferente. Hoje em dia a Nina ainda não enxerga, precisa usar fralda, mas tem outra qualidade de vida, consegue brincar com os tutores, não fica latindo sem parar durante a noite e parou de ter crises convulsivas.
Para a médica veterinária Marília Ismar, diretora técnica do Instituto Reabilitar Animal em Goiânia, é muito importante que os profissionais sempre se resguardem juridicamente, dentro do possível. A médica explica que, de acordo com o Conselho de Ética da profissão, os veterinários não podem utilizar medicamentos cuja eficácia não é comprovada cientificamente, mas questiona quais são os critérios para tal definição. “A gente não tem uma definição sobre o que é uma comprovação científica. São quantos trabalhos publicados? Cinco, dez, um, mil? Porque existem inúmeros trabalhos na literatura médico-veterinária envolvendo a cannabis. Ao meu ver, já existe comprovação científica.”, afirma. Marília também cita que o mesmo Código de Ética diz que o veterinário pode lançar mão de tudo que entenda como benéfico para tratar seu paciente e que esse artigo específico, mesmo com a vulnerabilidade jurídica, faz com que ela se sinta confortável para atuar com derivados da cannabis.
O veterinário Alex Favoretti explica que atualmente os tutores já aceitam mais os medicamentos com canabidiol por conseguirem ter exemplos reais de transformação de vida nos animais. Ainda sim, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que regulamenta a atuação veterinária, não se pronunciou a respeito de uma autorização que inclua os médicos veterinários entre profissionais aptos a prescrever medicamentos à base de canabidiol em prol de seus pacientes.
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