Abastecimento foi interrompido por mais de 65 horas, e causa da contaminação não foi explicada ainda; perigos incluem náuseas e câncer de fígado
No início de abril, dois milhões de pessoas de quatro municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro se viram sem água na torneira. Motivo: o Rio Guapiaçu, em Guapimirim, de onde vem o abastecimento, estava contaminado com tolueno, um derivado do petróleo utilizado na fabricação de tintas, solventes e combustíveis. A concentração do produto chegou a 59 microgramas por litro, que representa quase o dobro do permitido para a água potável. A substância, ao entrar em contato com o organismo, pode causar danos sérios nos rins, nos pulmões e no fígado. Por isso, a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) suspendeu o fornecimento em Niterói, São Gonçalo, Itaguaí, Maricá e Ilha de Paquetá entre os dias 4 e 7 de abril.
O Rampas ouviu especialistas para entender melhor os riscos do tolueno para a saúde humana e se foi correta a decisão da Cedae. Vinte dias depois, as causas da contaminação ainda não foram explicadas.
O tolueno é famoso por ser o principal componente da substância conhecida como “cola de sapateiro”. Pode causar alucinações auditivas e visuais leves, acompanhadas de tontura, tosse, salivação e perda de consciência. Em contato com a pele, a substância líquida pode causar irritações e vermelhidão, conta Luiza Marçal, doutora em química orgânica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro: “Basicamente os mesmos sintomas da inalação do tolueno se repetem. A diferença está na possibilidade de reações alérgicas que o corpo humano pode ter ao entrar em contato com o composto. Irritando a pele e causando o efeito de vermelhidão na região.”
Se ingerida em grande quantidade, a água contaminada com tolueno pode causar lesões graves nos órgãos, ressalta a especialista. “Caso houvesse muito tempo de exposição à contaminação, o consumo regular da água causaria danos irreversíveis ao corpo humano. O desgaste que o fígado teria na digestão da substância pode levar ao câncer, além da danificação dos rins e pulmões pelo contato contínuo com o hidrocarboneto.”
O tolueno na água é possível de ser detectado, afirma Caroline Lima, doutora em Química Orgânica pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professora adjunta da Universidade Federal Fluminense. “O tolueno, apesar de incolor, tem um cheiro muito forte e característico da própria substância. E por ter uma densidade menor que a água formaria uma camada visível logo no topo do copo, o que facilitaria que um consumidor pudesse notar com clareza a irregularidade do líquido.”
A Cedae afirma que não realizou o fornecimento de água oriunda do Canal de Imunana. Se a população tivesse sido exposta ao líquido em pequena concentração, os efeitos seriam náuseas, dores de cabeça e abdominais, sonolência, vômito e tonturas.
Segundo Carolina Lima, a decisão das autoridades foi correta: “O tolueno é um hidrocarboneto que pode ser muito perigoso para a população, trazendo diversos problemas caso a água contaminada entre em contato com a pele ou ingerida. Então, era de muita urgência que o abastecimento vindo do Sistema Imunana-Laranjal fosse interrompido.”
O Sistema Imunana-Laranjal é um canal da CEDAE chamado de Canal da Imunana. Segundo a própria entidade, ele transporta a água dos rios Guapiaçu e Macacu até uma estação elevatória de água bruta. De lá, o material é direcionado até a Estação de Tratamento de Água (ETA) do Laranjal, localizada no município de São Gonçalo.
Este sistema atende aproximadamente dois milhões de pessoas em Niterói, parte de Itaboraí, São Gonçalo, Ilha de Paquetá e dois distritos de Maricá (Inoã e Itaipuaçu).
Segundo a professora, a intoxicação por tolueno já era debatida antes mesmo da contaminação do Rio Guapiaçu. “O tolueno está presente nos esmaltes, nas colas, perfumes, cigarros, corantes e alguns outros. A exposição do hidrocarboneto aos seres humanos, através da inalação, é um problema para a saúde pública. Alguns estudos tentam elaborar a gravidade do contato com essa substância a longo prazo, já que não somos expostos a uma grande concentração em pouco tempo.”
A origem da contaminação
Ainda não houve confirmação de como aconteceu a contaminação do Rio Guapiaçu. A investigação continua, e o responsável pelo vazamento pode ser multado em até R$50 milhões, segundo o secretário estadual do Ambiente e Sustentabilidade, Bernardo Rossi.
Existem algumas possibilidades que explicam como uma concentração acentuada do tolueno foi parar na água. Perto do rio, existe um duto desativado da Petrobras. A estatal, por nota, informou não ter identificado qualquer anormalidade na operação de seus canos.
O presidente da Cedae, Aguinaldo Ballon, acredita na hipótese de que o solo ao redor da área já poderia estar contaminado e que as chuvas arrastaram a substância para o rio. A professora Caroline Lima discorda: “O tolueno é um composto bastante volátil. É improvável que ele perdure no solo por tempos prolongados, já que a ação do vento já o levaria para a atmosfera como gás e retiraria a concentração da substância do solo. É inviável pensar que a chuva possa ter realizado esse movimento.”
A opção mais provável é a do descarte indevido, completa a professora. “Considerando a volatilidade do composto, a possibilidade mais plausível seria de um despejamento da substância em grandes quantidades no rio. Não quero afirmar isso porque não é impossível que seja pelo solo, só é improvável.”
A atual situação das cidades afetadas
O abastecimento nos cinco municípios atingidos pelo vazamento já foi retomado, com a liberação do canal de Imunana. Niterói e São Gonçalo já tiveram a água normalizada, mas ainda existe a insegurança de consumir a água distribuída, conta João Barbosa, 21, morador de Raul Veiga, em São Gonçalo. “A água aqui vai e volta, o tempo todo. Eu não sei se terei água pro resto da semana, se vai estar limpa ou não. Depois que estourou a notícia, minha família está receosa de comer em restaurantes ou de cozinhar com a água que é distribuída em casa.”
Nas 65 horas de crise, os mercados ficaram lotados e as garrafas de água das prateleiras esgotaram rapidamente. “No primeiro dia, levei várias garrafas vazias pro meu trabalho pra encher lá e ter um estoque para crise. Voltei com pelo menos dez garrafas cheias numa sacola. Foi muito importante, porque já tinha esgotado tudo nos mercados próximos da minha casa”, comenta Gustavo Caetano, 36, morador de Boaçu, São Gonçalo.
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