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Julia Lima, Samira Santos e Sofia Molinaro

Cursos de Medicina no Brasil ainda ignoram saúde trans

Das 50 melhores faculdades de medicina do país, só a USP oferece disciplina específica sobre a população LGBTQIAPN+; nenhuma tem matérias sobre saúde trans


Das 50 melhores faculdades públicas de medicina do país, de acordo com o ranking de 2023 feito pela Folha de S.Paulo, só uma, a Universidade de São Paulo (USP), oferece disciplina voltada explicitamente para a saúde de pessoas LGBTQIAPN+. Quando o recorte é feito para o cuidado da população transgênero, esse número cai para zero. É o que revela um levantamento exclusivo feito pelo Rampas com base nas grades curriculares desses cursos.


Das 50 universidades pesquisadas, apenas 34% (17) oferecem nos cursos de medicina disciplinas sobre gênero e sexualidade. São disciplinas como “Saúde da Mulher, Sexualidade Humana e Planejamento Familiar”, “Gênero, Diversidade Sexual e Saúde”, “Diversidade Sexual e de Gênero na Saúde”, “Sexologia Humana - uma Abordagem Multidisciplinar e Multiprofissional” e “Legislação Médica E Relações Éticas, Sociais E De Gênero III”. 


Só a USP traz em sua grade curricular uma matéria eletiva que menciona diretamente o termo LGBTQIA+, Saúde da População LGBTQIA+. Nas demais, as disciplinas trazem termos “sexualidade” ou “gênero” no nome, e quase sempre são optativas. Matrizes curriculares mais antigas até têm disciplinas sobre a saúde sexual da mulher, mas não tratam da questão LGBTQIA+.


Elaborado pelo Rampas, o gráfico abaixo permite visualizar, por região, a distribuição das faculdades de medicina públicas que contam, ou não, com disciplinas sobre sexualidade e gênero.


Gráfico sobre relação de faculdades públicas de medicina por região e disciplinas que contemplam gênero ou sexualidade. Foto: Sofia Molinaro.

O silêncio dos cursos de medicina sobre a população trans está ligado a muitos outros preconceitos. Só em 2018 a Organização Mundial da Saúde (OMS) tirou a transexualidade da lista de transtornos mentais. A versão mais recente da CID (Classificação Internacional de Doenças) define a transexualidade como incongruência de gênero, dentro de condições relacionadas à saúde sexual, ao invés de classificá-la como transtorno mental. 

Oficialmente, não há dados governamentais sobre a população trans no Brasil. As primeiras estatísticas oficiais relacionadas ao grupo estão previstas para sair no último trimestre de 2024, resultado da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS). Em 2021, um estudo da Faculdade de Medicina de Botucatu, ligada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), apontou que 4 milhões de brasileiros são transgêneros ou não binários - o número representa 1,9% da população do país. 


Alguns conceitos que valem a pena entender

Para entender melhor o tema é necessário explicar alguns conceitos,  como o que é saúde sexual, identidade de gênero e sexo biológico. A saúde sexual está ligada à forma em que cada indivíduo vivencia a sua sexualidade e explora seu corpo. A identidade de gênero diz respeito à forma como a pessoa se reconhece: Mulher cis ou trans, homem cis ou trans, não-binários ou nenhum deles. Sendo assim, o gênero percorre os aspectos culturais e sociais dos indivíduos, diferente do sexo biológico que é associado a aspectos fisiológicos. O sexo biológico é uma classificação baseada na genitália podendo ser feminino, masculino ou intersexual. 


A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) conceitualiza três tipos de transgeneridade: Travestis, Transsexuais e Transgênero (TTTs). O termo Travestis é utilizado para se referir às mulheres transexuais que não sentem necessidade de realizar a cirurgia de redesignação sexual; os transexuais são pessoas que não se identificam com o gênero imposto socialmente e desejam realizar a cirurgia para transicionar ou começar a terapia hormonal. A nomenclatura Transgênero é usada como um termo guarda-chuva para identificar todos os subgrupos que atravessam a transdiversidade.  


As pessoas que nascem com o sexo masculino mas se identificam e vivenciam o gênero feminino se denominam mulheres trans. O oposto disso são os homens trans - as pessoas que nascem com o sexo feminino mas se identificam e vivenciam o gênero masculino. Os não-binários são os que não se sentem pertencentes a nenhum dos gêneros.


Ações para garantir direitos

O projeto Identidade - Ambulatório de Transdiversidade iniciou suas atividades em agosto de 2022 como no Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), e pouco depois, estendeu o atendimento para a Policlínica Piquet Carneiro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). São oferecidos serviços multidisciplinares, como endocrinologia, dermatologia, ginecologia, urologia, psiquiatria, entre outros, para atender às demandas variadas das pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. O Identidade é uma das poucas iniciativas que oferecem atendimento especializado a pacientes trans pelo Sistema Único de Saúde (SUS).




Em 27 de junho, o Supremo Tribunal Federal formou maioria para determinar que o Ministério da Saúde adote todas as práticas necessárias para que as pessoas trans sejam atendidas de acordo com o gênero que se identificam. Camila Iung, ginecologista do projeto Identidade, diz que a luta para assegurar esses direitos continua a permear o campo da saúde e tem passado por desafios. “A parte do garantido é mais difícil. Como a gente tem isso garantido? Não temos muito, né? Mas a gente tenta criar espaços onde podemos ter a facilidade de entender que ali é um lugar de acolhimento, sem preconceitos.”


Pamela Mashury é uma mulher trans e zeladora do Edifício Suelino, localizado no Rocha, zona norte da cidade. Ela conta que nunca teve problemas nos cuidados médicos dos serviços públicos de saúde, mas que constantemente passa por situações transfóbicas: “Eu sou uma mulher trans, falam ele. Ele é a palavra mais ridicularizada para uma mulher trans. Não tem ele. Você não está me enxergando ele, eu sou ela.”



A deficiência na assistência médica sexual a essa população faz com que ela seja desproporcionalmente a mais afetada por Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), especialmente o HIV. De acordo com o Relatório Global 2023 do UNAIDS (órgão das Nações Unidas para coordenar a resposta à epidemia de HIV/AIDS), a prevalência da infecção em pessoas trans é de 10,3%, enquanto a da população em geral fica em 0,7%. Segundo a PLOS One, periódico de pesquisadores da Universidade de Maastricht, na Holanda, trans femininas têm ainda mais chance de contrair o vírus do que trans masculinos: 19,9% testaram positivo para o teste, contra 2,56% dos masculinos.  


Bruno Brandão, médico de família e coordenador do programa de residência da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, diz que é importante garantir direitos de acesso à saúde garantidos, independentemente de orientação sexual ou identidade de gênero. “Isso abrange desde a saúde mental e reprodutiva até o direito à existência plena.”




De olho na gravidez de homens trans

Outro projeto de saúde voltado para a população trans acontece na Maternidade Climério de Oliveira, da Universidade Federal da Bahia (MCO-UFBA). em colaboração com a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e o SUS, a maternidade lançou em maio deste ano a primeira caderneta de acompanhamento gestacional de homens transexuais. O modelo hoje em uso pelo SUS inclui apenas mulheres cisgênero, usando termos como aleitamento materno, mãe e pai e saúde da mulher. A nova caderneta utiliza uma linguagem mais inclusiva. A iniciativa faz parte do programa “Transgesta”, desenvolvido em 2021, que tem como intenção incluir e visibilizar a população T no acompanhamento gestacional.  


Outros projetos e iniciativas lutam pela assistência e acessibilidade adequada às transdiversidades. A ANTRA publica diversas cartilhas e manuais, em parcerias com outras instituições, com a intenção de informar pessoas trans diversas sobre seus direitos, como “Manual de segurança pública – Atendimento e abordagem à população LGBTI” e “Cartilha Travestis e Transexuais na Saúde”. Simpson afirmou ainda que a ANTRA está elaborando uma cartilha de prevenção de HIV/AIDS.


Na esfera governamental, algumas políticas públicas têm marcado a luta pela garantia de direito da população LGBTQIA+, como o Programa de Atenção Especializada em Saúde da População Trans (PAES-PopTrans), proposto pelo Ministério da Saúde, o Brasil sem Homofobia, o Programa de Combate à Violência e Discriminação Contra GLBT e de Promoção da Cidadania Homossexual do Ministério da Saúde; e a Política Nacional de Saúde Integral LGBT.


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