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Dani Balbi: uma voz preta e trans na Alerj

Atualizado: 13 de mai.

De cria do Engenho da Rainha a deputada estadual pelo PCdoB, Dani Balbi fala sobre sua trajetória pessoal e política aos estudantes de Jornalismo da Uerj


Participaram da entrevista: Alice Lichotti, Amanda Quaresma, Amanda Reis, Ana Beatriz Dias, Ana Julia Silveira, Beatriz Serejo, Carlos Henrique de Araujo Cavalcante, Coral de Azevedo, Diego Figalva, Fernando Melo, Gabriella Awurakuye, Gabriel Amaro, Gabriel França, Giovanna Garcia, Guibsom da Silva, Hiago Soares, Julia Klotz, Larissa Moura, Lucas Diniz, Maria Eduarda Mariano, Maria Raiane de Oliveira, Matheus Bruzzi, Nicole Mendes, Palloma Miranda, Rafael Lopes, Rebeca Passos, Tiago Mendes, Vitória Thomaz


Texto final: Ana Julia Silveira e Palloma Miranda

Dani Balbi durante a entrevista/Foto: Giovanna Garcia

Danieli Christóvão Balbi é uma mulher múltipla. Preta, trans, militante, professora, suburbana, doutora em Letras, se tornou também a primeira deputada trans da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Foi eleita com mais de 65 mil votos.


Quando chegou à Universidade do Estado do Rio de Janeiro para a entrevista com a turma de jornalismo, às 7 da manhã de uma quinta-feira, sua energia e entusiasmo eram palpáveis. No elevador, disse que não acompanha futebol, mas mencionou admiração pelo Flamengo, time de sua mãe, e pelo Vasco, devido à luta histórica do clube pela causa antirracista.


Negra e nascida na periferia, a deputada carrega 18 anos dedicados à política, desde o movimento estudantil. Na Alerj, tenta fugir do rótulo de ser apenas uma deputada que cuida da causa trans - fala também de saúde, emprego e educação. E, claro, de eleição municipal: ela explicitou sua oposição à frente ampla em torno da reeleição do atual prefeito Eduardo Paes (PSD), que, em sua opinião, não inclui as pautas da classe trabalhadora.


Durante a entrevista, a deputada abriu seu coração e se emocionou ao falar de figuras como a mãe e as amigas, que desempenharam um papel fundamental em suavizar o caminho árduo que, como uma mulher trans, enfrentou na vida pessoal e pública. É materialista dialética “até certo ponto”: entre suas influências na vida e na política, há de Brizola a Shakespeare, passando pelo candomblé e pela fé judaica.


A seguir, trechos da entrevista:


A senhora entrou no PCdoB com 16 anos, no movimento estudantil. Como se interessou por política? Como foi seu processo de iniciação na área?


Dani Balbi: Minha mãe, uma mulher negra e funcionária pública, sempre teve consciência da sua condição de classe trabalhadora. Ela tinha suas referências políticas, como Leonel Brizola e Jandira Feghali, que representavam a classe trabalhadora. Minha mãe participava de passeatas e se envolvia em movimentos de representação dos técnicos e educacionais na universidade onde trabalha. Essas influências e o sentimento de pertencimento à classe trabalhadora, aliados à consciência difusa, moldaram minha compreensão das dificuldades que enfrentávamos como uma família negra, pobre e suburbana.


Ao longo do ensino fundamental, fui me identificando cada vez mais com a história da Revolução Russa e compreendendo a importância de figuras como Getúlio Vargas, que minha avó admirava. A relação da classe trabalhadora com a memória política recente no Brasil sempre esteve presente em minha vida, de forma difusa, mas impactante. Quando entrei no ensino médio na Escola Técnica da Faetec, uma escola politizada, me identifiquei imediatamente com a foto da Jandira e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Pedi para ingressar na juventude do partido e fui acolhida. Desde então, faço parte do Partido Comunista do Brasil.



A senhora já se considerava parte da comunidade LGBTQIAP+ desde o ensino médio? Ocorreu alguma movimentação dentro do seu partido com base na sua identidade de gênero?


Dani Balbi: A emergência do movimento LGBTQIAP+ organizado é muito recente e, quase 20 anos atrás, quando eu ingressei no ensino médio, era muito guetizada, tinha uma relação pouco direta com os partidos e com as pautas políticas que a gente considerava mais gerais. Então, eu já me considerava uma mulher transexual. Eu tinha 14, 15 anos quando me aproximei da juventude do Partido Comunista do Brasil e aos 16 ingressei efetivamente no PCdoB. Mas, aos 12 anos, a nossa vida melhorou significativamente porque tivemos mais acesso à informação por conta do governo Lula. Isso não é demagogia, de fato eu tive acesso à internet. Eu tinha uma série de desconfortos que, acidentalmente ou não, comecei a compreender a partir de pesquisas. Eu passei todo esse final da minha adolescência, o início da minha vida adulta, me referenciado como uma mulher transexual. Isso é importante porque, apesar da relativa truculência dos militantes do Partido Comunista na minha época, havia uma sensibilidade, eles me tratavam no feminino. Mas não era nada que fosse tratado, porque havia uma escassez enorme de debates e de reflexão aprofundada sobre essa relação, que é uma conquista muito recente.



Como foi sua experiência como mulher trans dentro do PCdoB? A senhora enfrentou situações de transfobia dentro do partido?


Dani Balbi: Essa pergunta é muito pertinente e obriga a gente a entender o que é a transfobia de forma mais ampla do que a resistência direta e explícita à participação de uma mulher transexual nesse movimento. Isso nunca aconteceu. Inclusive, quando eu colocava a questão de forma mais incisiva, rapidamente eu era chamada a fazer um debate ou dar uma palestra. Mas, sim, eu sofri transfobia porque os acessos às estruturas de decisão do Partido Comunista sempre foram interditados. Na própria juventude em que militei, por exemplo, eu nunca participei (da diretoria). Eu cheguei a ser referência de luta dentro de uma das maiores universidades do Brasil e a base pedia que o meu nome fosse de consenso, mas ele nunca foi considerado para ocupar nenhum cargo de direção. A justificativa era, “Nossa, mas você é tão boa trabalhando na base, por que a gente vai te tirar (da base) e colocar num cargo de direção?”.



Quando a senhora se viu como uma pessoa trans? Quais foram os seus apoios durante esse processo?


Dani Balbi: Ah, gente, eu tive minhas amigas. Quando eu era nova, uma amiga minha falou: “Nossa, você é muito privilegiada”. Mas a gente conversou e pensei: “Eu sou privilegiada? Uma mulher trans, preta, pobre, suburbana. Privilegiada?” Não é privilégio, é sorte. Eu tive muita sorte de ter uma mãe como a minha. Claro que houve problemas, mas, nossa, minha mãe é extremamente sensível. Então, o meu maior apoio foi, sem dúvida, minha mãe. Tive sorte, também, de ter grandes amigas como a Daya, a Ari, a Cris e outras, que me acompanharam desde o ensino médio até hoje, e o apoio de amigas na faculdade, como a Lívia, a Lala e a Laís.


Tive muita sorte de ter amigas, na sua maioria cis, mas que entenderam a questão da expressão do feminino, da afirmação da mulheridade, da transexualidade, que me ajudaram. Essa rede é fundamental para a gente se interessar nos estudos e superar desafios financeiros. Às vezes não tem o dinheiro do pão com mortadela, mas tem uma amiga que divide. Minha mãe também, quando eu fiz a minha cirurgia de confirmação de gênero, estava ali, com minha amiga Tainá, que hoje trabalha comigo na Alerj. Tive muita sorte de ter uma rede de afetividade que é negada para pessoas transexuais, porque são vítimas de discurso de ódio, do ascenso do conservadorismo, às vezes de mercadores de uma religiosidade persecutória. Enfim, é sorte.



O seu slogan é “por uma Alerj preta, trans e feminista”. Como foi para você chegar lá e se deparar com 70 deputados, dos quais apenas 15 são mulheres, sendo que apenas quatro delas se declaram pretas? Em um ambiente dominado pelo machismo e pela branquitude, como foi construída a relação entre vocês quatro e como as opressões são exercidas nesse lugar?


Dani Balbi: De fato, somos quatro negras: Dani Monteiro (PSOL), Renata Souza (PSOL) e eu, todas de esquerda, e a Tia Ju (REP), que é uma mulher de posições mais conservadoras, mas tem uma trajetória de luta em defesa dos direitos das mulheres inegável, gostando nós ou não das pautas mais gerais que ela apresenta. É muito difícil avançar com as pautas (na Alerj). Por exemplo, há pouco tempo a gente foi debater e tem alguns deputados que vivem em outro planeta, um deles disse que não havia racismo no Brasil. Eu não vou citar o nome, mas ele é de extrema direita. Então, o que acontece é que nós quatro acabamos nos organizando enquanto mulheres negras, para fazer avançar a pauta das mulheres negras. Foi estratégico, por exemplo, a deputada Renata Souza assumir a comissão de Mulheres, porque eu assumiria a de Trabalho. Apesar de a tia Ju ser uma mulher de expressão conservadora, ela compõe a comissão da Mulher e todas as proposições que vêm ou da minha comissão, ou da comissão da Mulher presidida pela Renatinha (Renata Souza), são sempre comentadas e contam com a tia Ju para ter sensibilidade dos deputados de direita. Então, são estratégias, a criatividade política das mulheres negras se articulando, apesar de questões macroestruturais.

Dani Balbi e alunos de Jornalismo da Uerj/Foto: acervo próprio turma de Redação

A senhora tenta, de alguma forma, fugir dos rótulos de uma deputada que cuida de pautas LGBTQIAP+?


Dani Balbi: O primeiro projeto de lei que a gente aprovou foi a cota para pessoas trans e travestis aqui na Uerj e na Uenf. A gente tem muitos projetos de lei para a comunidade LGBTQIAP+, muita produção, mas a questão é a seguinte: a gente não trata só sobre isso. Não trata sobre isso como uma perspectiva que se encerra, de certa maneira, em si, porque articulamos com os debates mais gerais. Esse eu acho que é, talvez, um dos meus maiores orgulhos e que tem a ver com a minha tradição comunista: entender como é o debate e o olhar priorizado para os segmentos historicamente mais vulneráveis, que são a maior parcela da população, mulheres, negros, população LGBTQIAP+. Se a gente organizar isso tudo, estamos legislando para a maior parcela da população. Então, o debate estrutural é indissociável da atenção e da sensibilidade a esses segmentos. Eu acho que é isso que a extrema-direita ou a direita tradicional e, às vezes, até pessoas melhor intencionadas, não entendem.



O Estado do Rio de Janeiro demonstrou a força do bolsonarismo ao eleger Claudio Castro (PL) no primeiro turno nas últimas eleições. Levando isso em consideração, como a esquerda está se organizando para as eleições municipais do próximo ano? Com nomes como Paes (PSD) e Freixo (PT), possíveis candidatos com o apoio do presidente Lula, quem você apoiaria?


Dani Balbi: Durante o ato de filiação de Marcelo Freixo no PT, ele declarou que a missão da esquerda era sustentar e fortalecer o governo Paes e apoiá-lo numa eventual reeleição. Eu discordo veementemente dessa posição. Eu concordo com a análise mais geral de que o bolsonarismo não está morto, as últimas pesquisas apontaram que o Flávio Bolsonaro tem condições de recompor a extrema-direita e é um candidato extremamente competitivo aqui na cidade do Rio de Janeiro. Porém, eu não acredito que a estratégia para a composição da frente ampla seja o recolhimento das bandeiras históricas da classe trabalhadora. Quando os movimentos sociais têm empoderamento, a gente tem mais condições de derrotar o fascismo a longo prazo. Então, eu não posso acreditar que o governo do Eduardo Paes é a única saída, já que orienta, por exemplo, a Guarda Municipal a bater em camelôs e a apreender suas mercadorias, que são a única fonte de sustento de, principalmente, mulheres negras. Eu, enquanto parlamentar de esquerda, sou radicalmente contra esse projeto de gestão da cidade. Se for para comprar uma frente ampla com Eduardo Paes, ele precisa fazer autocrítica e o projeto político precisa ser influenciado fortemente por nós de esquerda. Até hoje, eu não tenho candidato.



Deputada, a senhora acredita que o deputado Freixo é o nome para encabeçar a frente ampla?


Dani Balbi: Ah! Vocês querem spoiler? Está se desenhando uma chapa, uma tentativa de repetição da tática da frente ampla, com uma lógica de chapa alterada: com um prefeito menos progressista e um vice com uma trajetória mais combativa. Talvez possa, inclusive, se dar o cenário em que o Freixo sequer dispute as eleições de 2024 e a gente tenha outra composição, mas me parece que o PT vai atuar para que, no primeiro turno, a gente avalie o governo do Eduardo Paes como a única alternativa frente ao ascenso do bolsonarismo. Eu não concordo com isso, mas é o que me parece estar se desenhando. Então é preciso que, talvez, partidos que sempre estiveram na vanguarda da luta política lancem candidaturas majoritárias que possam startar um debate de cidade mais qualificado, e acho que o papel da esquerda é não aderir a nenhum bloco colocado.



Como é a abordagem da sua política combativa em relação à intolerância religiosa, considerando que as religiões de matriz africana sofrem 91% dos ataques religiosos? Se desejar, a senhora poderia compartilhar qual a sua religião?


Dani Balbi: A primeira audiência pública da Comissão de Combate às Opressões abordou a intolerância religiosa. Apresentamos um projeto de lei para ampliar as medidas de combate e estabelecer um departamento especializado nessa questão.

Minha história religiosa é um tanto complicada: sou comunista e materialista dialética até certo ponto. Minha mãe, que é minha referência, é uma mulher, atualmente, de axé, mas nos criou dentro do espiritismo kardecista. Meu pai, um homem italiano de ascendência judaica, não é religioso e, na verdade, tem uma simpatia pelo materialismo dialético maior do que a minha. À medida que tentei reconectar-me com minha figura paterna, acabei me aproximando da tradição judaica. Também me envolvi com as religiões de matriz africana, influenciada por minha mãe.

Atualmente, frequento um centro de candomblé e também alguns centros de cabala. Minha religiosidade está no cruzamento entre as religiões de matriz africana e a tradição mística judaica, as quais considero mais inclusivas, democráticas e antissionistas.



A senhora está desde os 16 anos na vida política e, de lá para cá, alguns anos se passaram. A senhora sente que a sua reação a certos preconceitos mudou nesse meio tempo? Reagia de um jeito quando se descobriu e, hoje em dia, reage de outro?


Dani Balbi: Eu acho que todo mundo é educado pelo ascenso nos movimentos sociais; eu acho que eu tolerava mais e hoje tolero menos. Quando não respeitam a minha identidade de gênero, sou incisiva e corrijo na hora. Quando comentam ou fazem, por exemplo, agressões mais diretas e até tentativas de docilização, entendo tudo como transfobia, porque é estratégia transfóbica. Eu, hoje, sou mais incisiva. Tento não ser belicosa, porque entendi que a belicosidade, apesar de ser uma expressão muito legítima de pessoas que sofrem muito, é, ainda hoje, utilizada contra nós. Então, eu aprendi a ser incisiva e a responder imediatamente sem ser belicosa, mas não deixo passar.



A senhora tem graduação em Letras, mestrado e doutorado em Literatura. Para encerrar nossa entrevista, gostaríamos de pedir uma última contribuição: uma dica de leitura de Dani Balbi.


Dani Balbi: Eu sou uma mulher negra e trans, mas fui formada em uma universidade clássica e conservadora. Como nós, inevitavelmente, acabamos sendo produto do meio, gostaria de indicar uma obra literária clássica e canônica. Recomendo a leitura de Shakespeare, especialmente "Macbeth". Essa peça talvez seja a mais completa de Shakespeare, pois aborda relações humanas, afetivas, poder, sedução e apresenta reflexões sobre a dualidade da maldade e da bondade, todas as contradições que os seres humanos carregam. Eu já li cerca de 50 vezes!

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