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Foto do escritorGiulia Costa

Muito além dos diários de Carolina Maria de Jesus

Atualizado: 13 de abr.

Exposição apresenta vida e obra da escritora e multiartista mineira


Carolina Maria de Jesus apresentada na exposição (Acervo: original)

Era uma manhã de verão de fevereiro de 1940, e a catadora de papel Carolina Maria de Jesus, de 25 anos, se dirigia ao extinto jornal Folha da Manhã, na cidade de São Paulo. Seria a primeira de incontáveis tentativas de Carolina para se tornar uma escritora publicada. Ou uma “artista”, como costumava dizer. Levava nas mãos uma folha escrita com o poema “O colono e o fazendeiro” - que o jornal publicou.


O episódio do poema publicado no jornal é pouco comentado. Não raras vezes, a autora parece ter nascido para o ofício só vinte anos mais tarde, em 1960, quando publicou sua obra mais importante, “Quarto de Despejo”. Sucesso de venda, o livro best-seller foi traduzido para cerca de treze idiomas e chegou a tiragens anuais com mais de cem exemplares.


Para além de escritora de diário, Carolina foi romancista, poetisa, compositora e fez carreira circense. E é essa artista completa e versátil, embora pouco conhecida, a protagonista da exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, montada inicialmente no MASP (Museu de Arte de São Paulo) e agora em cartaz no MAR (Museu de Arte do Rio).


O trabalho mistura a genialidade de Carolina com questões históricas e sociopolíticas que marcaram sua obra. A curadoria é do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto. Eles também contaram com um Conselho Consultivo, composto por doze mulheres negras, que participaram de todo o processo de curadoria. Entre os nomes destacados da comissão esteve a filósofa e militante Sueli Carneiro.

Abertura da exposição no Museu de Arte do Rio (Foto: acervo original)

A pesquisa literária e histórica da vida de Carolina levou cerca de dois anos. Como resultado, a exposição reuniu um acervo amplo que se divide entre manuscritos, peças de roupas, objetos pessoais, fotografias e tiragens de jornais do século passado. Nas paredes da mostra, frases de Carolina resumem seu desejo sempre latente de ser escritora e as muitas dificuldades que enfrentou pelo caminho, como mulher, pobre e negra.


A primeira sala da exposição fala da Carolina escritora. Nas paredes vermelhas, trechos da obra da artista contam parte da sua biografia e carreira. Sua jornada como leitora e autora best-seller é narrada em primeira pessoa, lembrando as idas aos jornais para apresentar seus textos e os “nãos” que recebeu.

Fotografias da carreira de Carolina (Acervo: original)

Do fascínio de Carolina pela escrita, Atilio Bergamini, professor de Literatura da Universidade Federal do Ceará, lembra que Carolina dizia enlouquecer quando não tinha papel e caneta. Para ele, que se dedica a estudar a obra da mineira, a relação dela com a literatura era visceral. As horas empenhadas no ofício variavam de acordo com a rotina da escritora. Em geral, todos os dias ela iniciava os trabalhos às 3h da madrugada e só parava por volta das 8h ou 9h, quando começava o expediente como catadora.


“Carolina escreveu muito e por muitos anos. Uma pessoa que escreve tanto e por tanto tempo, obviamente, tem uma consciência aguda do que está fazendo”. Por ser reconhecida como escritora de diário, a artista frequentemente é associada a uma produção somente atravessada pelo ambiente externo. Bergamini, entretanto, discorda. E aponta a consciência literária da escritora, a partir de sua vida de leitora: Camões, Luís Gama, Bernardo Guimarães e Nietzsche. E não era de tudo que ela gostava. Sobre “Presença de Anita” (1948), de Mário Donato, não poupou críticas. Sinalizou alguma coisa perto de “uma pouca vergonha”. Também não aprovou o retrato que o autor fez das mulheres, ora frígidas, ora hipersexualizadas.


Se a bagagem de leitura foi grande, a de escritos também. Bergamini cita, pelo menos, seis romances. Muita poesia, peças de teatro, crônicas e composição musical. Esse material está bem conservado e exposto na mostra reunida pelo IMS. Grande parte ainda nos manuscritos originais. Sobre isso, Bergamini é enfático: “Tudo ainda é provisório”. O professor afirma que uma fração das obras de Carolina permanece ainda inédita. Esperançoso, aponta para um trabalho recente de resgate da produção de Carolina que estaria sendo mediado pela própria filha, Vera Eunice, e um corpo de pesquisadoras junto à Companhia das Letras. “Nos próximos anos, se elas tiverem sucesso, a gente vai ter acesso a muita coisa que a gente desconhece. Uma nova Carolina vai aparecer.”

Manuscritos de Carolina (Acervo: original)

A própria obra “Um Brasil para os Brasileiros”, que inspirou a exposição, na verdade, é um manuscrito que teria dado origem ao “Diário de Bitita” (1986). No texto, Carolina narra a migração que realizou, junto de sua mãe, de Minas Gerais para a favela do Canindé, em São Paulo. Passa pelas questões sociopolíticas que enfrentou, especialmente a pobreza, a fome e o racismo. Esse seria mais um dos tantos manuscritos da autora que “foram e não foram publicados”, como garante Bergamini. A hipótese geral é que parte considerável das obras da escritora permanece ainda neste limbo editorial. Bergamini afirma só ter tido contato com parte dos manuscritos de Carolina em suas pesquisas. Em entrevista ao IMS, Hélio Menezes também comentou que “Um Brasil para os Brasileiros” foi um trabalho que apareceu durante a própria curadoria da exposição.


A exposição também retrata a relação de Carolina com o mercado editorial. Carolina queixou-se, mais de uma vez, da falta de liberdade para escrever romance e dramas. Ou qualquer outra coisa que não fosse diário. O dilema dos gêneros rendeu boas desavenças com seus editores. E, claro, algumas páginas manuscritas.

Carolina nos jornais (Acervo: original)

De um lado, a artista pleiteava a liberdade poética, do outro, os editores queriam apostar em uma Carolina que já tinha dado certo. São corredores inteiros cobertos por manchetes e mais manchetes que evidenciaram a ascensão social de Carolina, de catadora a escritora. No acervo, encontram-se memórias das viagens que realizou pelo Brasil, as conferências de escritores que participou e, claro, a emblemática fotografia prestes a decolar de avião. A mostra também contempla tiragens que evidenciam uma série de preconceitos pelos quais Carolina passou, sendo os mais evidentes, o racismo e o classicismo.


Em uma das manchetes resgatadas pela curadoria, a escritora é chamada de “niger”, expressão racista estadunidense. O próprio termo “favelada”, como garante Hélio Menezes ao IMS, apesar de hoje ter sido ressignificado, na época, possuía caráter altamente pejorativo. Na mesma ocasião, ele chama a atenção para as fotografias que procuravam, quase sempre, evidenciar tristeza e melancolia. Essas impressões estão bem materializadas no estande “uma mulher negra feliz é um ato revolucionário”.


A crítica literária, por vezes, também foi dura com Carolina. Na época, boa parte das críticas tinha um tom paternalista em relação aos trabalhos da escritora. Bergamini ressalta que a obra dela frequentemente é considerada melodramática ou maniqueísta demais. Para ele, os adjetivos são totalmente mal aplicados. Sem contar as muitas vezes que as pesquisas acadêmicas fazem análises, citam conceitos e linhas filosóficas distantes da produção da autora. Correu na mídia até uma ideia de que os diários não eram escritos por Carolina. Apesar disso, Bergamini cita críticas positivas ao trabalho da escritora e o inegável carinho popular que recebia.“Carolina foi uma das maiores celebridades do Brasil dos anos sessenta”.

Essa perspectiva, segundo ele, não é a mais comum, mas é importante para desconstruir a ideia de uma Carolina sempre sofrida. Bergamini lembra que ela mesma chegou a reclamar de ter se transformado em “ponto turístico”. Ou, então, da falta de tempo para escrever, realidade que a agenda abarrotada de compromissos lhe renderam depois da fama. O incômodo foi tanto que Carolina garantiu que preferia continuar como catadora de papel caso soubesse que a vida de escritora a impediria de, de fato, escrever.


O acolhimento popular, apesar de observado por Bergamini, não é suficiente para garantir que Carolina teve o reconhecimento merecido, como constata. Essa seria uma questão, ainda hoje, aberta. E esse não seria o maior dos problemas. Em 1964, com a ascensão do regime militar, a escritora foi obrigada a se recolher e sumir da cena. O motivo: a sua participação no movimento negro.




Bandeiras do Brasil associadas à luta negra e da população pobre (Acervo: original)

A afinidade histórica entre Carolina e a comunidade negra é bem retratada na exposição do IMS. A curadoria procurou levar em conta o que significou a presença de Carolina, mulher negra retinta, no Brasil do século passado e no de hoje. Bergamini rejeita a ideia de que o movimento negro seria um agregado tardio à vida da escritora. “A comunidade negra foi um grande esteio na recepção literária da Carolina Maria de Jesus.” Bergamini lembra que, durante o lançamento de “Quarto de Despejo” (1960), a escritora ia às associações negras de cada cidade em que passava. Nesses espaços, a artista realizava palestras além de outras atividades, como declamações de poemas e leituras compartilhadas.


“Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os Brasileiros” se constrói também em diálogo com artistas negros que produziram sobre Carolina, das artes plásticas à literatura. Outros nomes lembram episódios marcantes da luta negra no país. Entre eles, o resgate da memória de Anastácia, princesa africana escravizada no Brasil, e de Marielle, vereadora negra assassinada em 2017, ou ainda o Caso Rafael Braga, rapaz negro preso injustamente por portar desinfetante. Além disso, artistas negros já consagrados, como Heitor dos Prazeres e Maxwell Alexandre marcam presença na exposição.


Para além disso, “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os Brasileiros” também resgata a intimidade da escritora como mulher e mãe. Uma série de objetos, de sapatos a louças, lembram o lar que sempre fez parte de sua obra. A favela, na vida da escritora e na exposição, não é só plano de fundo, mas conta uma história individual e coletiva. A maternidade, igualmente, é presente nas extensas coleções de fotos e, claro, nos escritos de Carolina, todos eles de alguma forma ligados à sua maternidade forte e amorosa. Um projeto que articula a biografia e a carreira de uma das maiores escritoras brasileiras.


Carolina e memórias familiares (Acervo: original)



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