Falta de acesso a mais opções de filmes afeta moradores de regiões periféricas
Da Zona Sul à Zona Oeste do Rio, a desigualdade também passa pelo escurinho do cinema. Em uma segunda-feira, dia 18 de março, o Grupo Estação, complexo composto por três cinemas nos bairros de Botafogo e Gávea, tem sessões de 17 filmes diferentes, incluindo os ‘queridinhos’ do Oscar. Naquele mesmo dia, os sete cinemas da Zona Oeste do Rio, que somam 42 salas, exibiam 13 filmes.
E, dos 13 filmes em cartaz, 8 eram blockbusters, filmes de entretenimento muito populares e bem-sucedidos financeiramente, que arrastam multidões para os cinemas. São obras como Homem-Aranha Sem volta para Casa (2021) ou Batman (2022). Barbie (2023), da diretora Greta Gerwig, foi a maior e mais lucrativa bilheteria de 2023, conquistando U$1,44 bilhão. Por isso, passou meses em cartaz em diversos cinemas. Nos cinemas da Zona Oeste, as salas eram dominadas pelas superproduções americanas Madame Teia (2023) e Todos Menos Você (2023) e pela comédia nacional Os Farofeiros 2 (2023).
Nada contra blockbusters nem comédias, nacionais ou estrangeiras. Mas e outros estilos de filmes? Quem tem direito à cultura cinematográfica fora da bolha blockbuster na cidade do Rio de Janeiro?
A Zona Oeste carioca tem sete cinemas, todos em grandes shoppings: Shopping Bangu; Park Shopping Sulacap; Park Shopping Jacarepaguá; West Shopping; Center Shopping Rio; Shopping Jardim Guadalupe; Park Shopping Campo Grande. Em contrapartida, só em Botafogo, existem três cinemas de rua: Estação Net Rio (5 salas), Estação Net Botafogo (3 salas) e o Espaço Itaú de Cinema (6 salas). Mais os complexos do Botafogo Praia Shopping (6 salas) e do Rio Sul (6 salas). No total, são 26 salas para um único bairro.
Em contrapartida, cinemas da Zona Sul do Rio de Janeiro sempre oferecem um catálogo maior. No mesmo dia 18 de março, por exemplo, o Grupo Estação, com dois estabelecimentos em Botafogo e um na Gávea, mantinha 17 filmes em exibição.
Em razão da diferença de perfil socioeconômico, esta reportagem não incluiu na Zona Oeste os cinemas da Barra da Tijuca e Recreio. Reportagem da Band mostrou que, na Barra, são 364 assentos para cada 10 mil habitantes; já bairros como Jacarepaguá, Bangu e Campo Grande têm menos de 50 assentos por 10 mil habitantes. Por isso, apesar de geograficamente fazerem parte da Zona Oeste, os bairros da Barra da Tijuca e Recreio não entraram nesta reportagem porque não refletem a realidade cultural de outros locais da região.
Poucos filmes para muito interesse
Flávio Agripino, estudante de estatística e morador de Bangu, diz que o catálogo dos filmes na Zona Oeste é muito limitado. “Caso eu realmente queira assistir a um filme que circula pelas premiações, notícias, e até mesmo internet, eu sou obrigado a optar por outros locais, principalmente Zona Sul, porque a exibição é mais provável de acontecer lá.”
A rede Cinesystem, um dos maiores complexos de cinemas com atuação no Rio de Janeiro junto com o Kinoplex, explica em seu site oficial como são escolhidos os filmes que serão exibidos: “Número de salas, perfil do público e estratégia das distribuidoras definem em quais praças os filmes irão entrar em cartaz.”
Thiago Medeiros, pesquisador do curso de Cinema e Audiovisual da UFF e morador de Santa Cruz, acredita que essa visão pode ser uma constatação instaurada e reafirmada pelas distribuidoras, instituições e pelo público em geral.
Thiago relata que foi assistir ao filme Zona de Interesse (2023) no Park Shopping Campo Grande durante o UCI Day Oscar, iniciativa da rede de cinemas UCI Cinemas para exibir os filmes do Oscar. Ele defende que, com certos incentivos, seria possível que o filme despertasse mais atenção na população da Zona Oeste, pois, mesmo sendo numa quinta-feira à noite, havia um público diverso interessado em assistir ao longa. “Se teve público na iniciativa que durou só dois dias exibindo esse filme, imagina como seria se as pessoas tivessem o Park Shopping como um cantinho regular para assistir a filmes como esse, mais nichados? ‘Hype’ do Oscar à parte, se tem gente disposta a assistir duas horas de um filme europeu meio ‘paradão’, com certeza muitos filmes exibidos no outro canto da cidade poderiam estar sendo assistidos por alguém aqui.”
Apesar disso, ele diz que é muito difícil que pessoas da Zona Oeste se interessem por realidades, eventos e filmes que estejam fora da realidade delas. “Num cenário em que a estrutura e o acesso à informação são concentrados na Zona Sul da cidade, assim como os festivais, mostras, cineclubes e a distribuição de filmes que fogem do ‘mainstream’, é difícil se imaginar um cenário em que, de uma hora para outra, toda a população da Zona Oeste comece a se interessar pelo novo”.
Momento de prazer e cultura vira um pesadelo
Maria Cardoso, designer gráfica e moradora da Vila Kennedy, fala com grande frustração dos cinemas da Zona Oeste. Reclama da falta de opção dos filmes em cartaz e a falta de recursos de acessibilidade, como opções com legenda. Por isso, ela precisa se deslocar para cinemas na Zona Sul, como o Estação Net Rio. “Para assistir aos filmes que eu quero, preciso gastar mais de 20 reais só de passagem, e todo o trajeto demora quase duas horas.”
Em média, ela costuma gastar cerca de 40 reais quando vai a algum cinema perto de casa. Quando o filme está sendo exibido longe de sua residência, ela desembolsa por volta de 70 reais com transporte público, ingresso e alimentação.
Rafael Borgiet, auxiliar administrativo na Globo e morador de Jardim Bangu, relata como é difícil viver um dos seus grandes hobbies, que é ir ao cinema: “Sinceramente, só de pensar em ficar mais de duas horas num ônibus só indo já me frustra”.
Para ele, a maior dificuldade em ir ao cinema se dá pelo conjunto de gastos, além da falta de segurança. “Já sofri diversos ataques e tentativas de assalto no caminho pra casa. E é impossível voltar sem um Uber que não sai por menos de 30 reais até a parada de ônibus mais próxima. Um lazer como ver filmes, que deveria ser leve, se torna exaustivo.”
Flávio Agripino sofreu um assalto na saída do Via Parque Shopping, na Barra da Tijuca, ao sair do cinema à noite. “Fui pegar o transporte público pra não pagar um transporte particular que sairia muito mais caro. Fui assaltado e perdi todos os meus pertences. Nunca mais pisei lá.”
Ambos amantes de cinema, Flávio e Rafael falam do desejo de ver no cinema alguns dos filmes do Oscar 2024, como Zona de interesse (2023), A Cor Púrpura (2023) e Pobres Criaturas (2023), porém as dificuldades de locomoção e questões financeiras os impediram de realizar essa vontade.
Já Maria Cardoso só viu quatro dos dez principais filmes indicados ao Oscar, mas queria ter visto todos. “Eu assisti todos no Net Rio. Nenhum em Bangu. E eu não pude nem assistir todos porque não tive tempo nem grana. Eu preferia ter assistido todos no cinema. Até Oppenheimer eu queria ter assistido ao IMAX da Barra, que conta com uma qualidade de som e imagem melhor, mas não deu de grana.”
Em Santa Cruz, nada de cinema
Quem vive em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste com 218 mil habitantes, é obrigado a se deslocar, no mínimo, 15 quilômetros para ter acesso a um cinema. Os mais próximos estão no West Shopping e no Park Shopping, em Campo Grande, e no PátioMix, em Itaguaí.
A região já teve um cinema de rua, o Cine Santa Cruz. Localizado na região central do bairro, na Rua Felipe Cardoso, 72, o espaço tinha capacidade para 220 lugares. O cinema fechou em 1994, e o lugar hoje funciona como um centro comercial, o “Santa Cruz Feira Shopping”.
A RioFilmes, empresa pública de investimento em audiovisual do município do Rio de Janeiro, em nota para o Rampas, afirmou que tem intenção de ampliar a oferta de cinema na cidade do Rio: "Uma das metas primordiais da RioFilme é investir na ampliação das salas de cinema de rua no Rio de Janeiro. Ainda no primeiro ano dessa gestão, em outubro de 2021, reabrimos o CineCarioca Nova Brasília, no Complexo do Alemão, oferecendo acesso a filmes de qualidade a uma população de cerca de 60 mil pessoas, distribuídas entre 15 comunidades”.
Em 2023, a RioFilme investiu R$ 3,5 milhões, por meio dos editais Viva o Cinema de Rua I e II, do Pró-Carioca Audiovisual, na modernização e reforma de salas de cinema de rua na cidade. Os valores investidos nos referidos editais foram provenientes da Lei Paulo Gustavo.
Após ampla consulta pública, o primeiro edital ficou aberto de 31 de agosto a 22 de setembro de 2023, e o segundo abriu de 14 a 24 de novembro de 2023. “Infelizmente, não recebemos nenhuma proposta proveniente de Santa Cruz e região”, afirma a nota.
Segundo a RioFilme, os editais permitiram a reabertura do Cine Penha e do Ponto Cine de Guadalupe, na Zona Norte da cidade. Além disso, o Cine Santa, em Santa Teresa, os cinemas do Grupo Estação e a Cinemateca do MAM também foram beneficiados pela reforma e modernização de suas salas.
Entre a falta de salas de cinema e de opções de filmes, a Zona Oeste se ressente do fim de um dos maiores cinemas da cidade, o Cine Palácio Campo Grande, com 2 mil lugares. Ao noticiar o fechamento da casa, o jornal O Dia titulou “O fim do maior cinema do Rio”. Inaugurado em agosto de 1962, o Cine Palácio durou 28 anos e foi fechado em 1990. Exibiu desde filmes comerciais, como o de estreia, Avalanche de Bárbaros (1960), sucesso na época, até clássicos do Cinema Novo, como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha.
O último filme exibido foi Uma Linda Mulher (1994). Hoje o maior cinema da Zona Oeste deu lugar a um templo da Igreja Universal.
reportagem muito importante!!!