A luta cotidiana de quem vive na ocupação Gilberto Domingos, no centro do Rio de Janeiro
No bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, um edifício abandonado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) se tornou o novo lar de muitas famílias, graças à ocupação organizada pelo Movimento Unido dos Camelôs (Muca). Desde novembro de 2023, a Ocupação Gilberto Domingos se ergue como um símbolo de resistência e luta pelo direito à moradia digna. Entre os ocupantes, está José da Cruz, conhecido como Cruz, um camelô que chegou de São Paulo em 1985 e passou os últimos 30 anos no comércio ambulante, enfrentando a fiscalização e lutando por uma vida digna.
Cruz também passou pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), onde aprendeu sobre a importância da organização e da luta coletiva: "Sempre acreditei que morar era um direito, assim como trabalhar. Não só para mim, mas para todos os meus companheiros. Todo ser humano merece um lugar digno para viver".
A decisão de ocupar prédios abandonados surgiu da necessidade diante das condições precárias de vida e trabalho: "Com a dificuldade que temos para juntar dinheiro e comprar uma casa, a única opção é pagar aluguel, mas nem isso conseguimos direito. Então, ocupar um espaço abandonado se tornou um dever, um ato de sobrevivência". Desde 9 de novembro de 2023, Cruz e outros ocupantes estão morando no número 48 da Rua do Riachuelo.
Uma luta coletiva: a rotina na ocupação Gilberto Domingos
Na ocupação Gilberto Domingos, são os próprios moradores que mantêm tudo funcionando. Eles organizam a segurança, a limpeza e a manutenção do prédio. "Ninguém deixa de trabalhar. Quando um vai trabalhar, o outro fica e vai depois. Por isso, o companheirismo e a união são importantes", explica Cruz. O camelô acrescenta que o prédio nunca pode ficar vazio, o que exige uma organização rigorosa dos horários de trabalho.
Maria dos Camelôs, coordenadora geral do Muca-RJ e moradora da ocupação, afirma que o movimento vai além das questões dos ambulantes e abrange políticas para todos: "O Muca não pensa apenas em políticas para nossa categoria. Os camelôs são muitas vezes pressionados pela Guarda Municipal e não conseguem pagar aluguel. Por isso, ocupamos espaços abandonados para transformá-los em moradia. Se um prédio do INSS está ocioso há mais de 30 anos, damos a ele uma função social". A ocupação é uma resposta direta à falta de políticas públicas eficazes para garantir moradia digna e um ato de resistência contra a financeirização da moradia.
Maria conta que conseguiram entrar na ocupação através de uma escada por uma das janelas. E fala dos planos futuros: "Pretendemos transformar este espaço em um modelo de organização com creche, lanchonete e outras iniciativas que gerem renda para os moradores. Tudo aqui é construído coletivamente. Essa união é fundamental para nossa resistência".
A ocupação foi batizada de Gilberto Domingos em homenagem a um companheiro falecido tragicamente. "Gilberto foi atropelado, e dedicamos essa ocupação a ele. É uma forma de manter viva sua memória e luta", explica Maria.
O direito à moradia na Constituição e a realidade social
O déficit habitacional no Brasil alcançou 6 milhões de domicílios em 2022, o que representa um aumento de 4,2% em comparação com 2019. Já no estado do Rio de Janeiro, o déficit habitacional é de 544.275 domicílios, com 409.640 concentrados na Região Metropolitana, o maior número desde 2016. Os dados, divulgados pela Fundação João Pinheiro (FJP), baseiam-se nos números de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) e do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), destacando uma situação preocupante na habitação.
Mariana Trotta, advogada popular e co-líder do grupo de pesquisa Direitos Humanos e Movimentos Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destaca que o direito à moradia adequada é reconhecido na Constituição Federal brasileira, mas a efetividade desse direito ainda é uma luta constante. "O conceito de moradia adequada envolve não apenas um teto, mas também saneamento básico, luz, educação, saúde, lazer, cultura, mobilidade urbana e segurança pública", explica Mariana. Porém, historicamente, as prioridades políticas não foram direcionadas para garantir a moradia adequada como um bem necessário para a dignidade das maiorias populares. A lógica da financeirização e da mercantilização da habitação predomina.
A Constituição Federal estabelece que toda propriedade deve cumprir uma função social, ou seja, deve ser utilizada de maneira a beneficiar a comunidade e atender às necessidades coletivas, como moradia, trabalho e lazer. No entanto, muitos imóveis ainda não cumprem essa função.
Mariana destaca a importância de três dispositivos legais que precisam ser regulamentados pelos planos diretores dos municípios para garantir o uso social das propriedades. O primeiro é o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) progressivo, que aumenta a taxa do imposto conforme o valor do imóvel, o que incentiva a utilização de terrenos e prédios ociosos. O segundo é o parcelamento e a edificação compulsória, que obriga proprietários de terrenos subutilizados a construir ou parcelar suas propriedades dentro de um prazo determinado. O terceiro é a desapropriação-sanção, que permite ao poder público tomar posse de imóveis que não cumprem sua função social, mediante pagamento em títulos da dívida pública. Essas medidas são essenciais para combater a especulação imobiliária e promover o desenvolvimento urbano sustentável.
Ocupação como forma legítima de luta
Para quem não tem um teto para viver, a ocupação é uma forma legítima de pressionar pelo cumprimento do direito à moradia. Uma decisão emblemática do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 1997 reconheceu que a ocupação de terras não é um crime, mas uma forma de pressão legítima. "Vivemos uma disputa pela cidade, e a ocupação é uma forma de trabalhadores precarizados disputarem seu espaço na cidade", afirma Mariana. O direito à cidade está previsto tanto na Constituição Federal quanto no Estatuto da Cidade, que fala da gestão democrática da cidade.
Cruz, morador da ocupação e camelô, descreve a difícil realidade enfrentada por muitos trabalhadores informais: "A fiscalização nos pressiona constantemente. Nunca sabemos se vamos voltar para casa com dinheiro ou sem a mercadoria. Precisamos de moradia, trabalho e saúde, mas muitos de nós não têm condições de conseguir isso". Ele destaca a necessidade de ocupar prédios abandonados para garantir um espaço digno para morar. "Se morar é um direito, ocupar é um dever. Não queremos luxo, apenas um lugar adequado para viver perto do trabalho. Muitos companheiros têm que enfrentar longas viagens diárias, gastando o pouco que ganham com transporte caro. Isso é um absurdo, e o trabalhador está sempre sendo massacrado," conclui.
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