Em meio ao avanço digital, lojas de livros usados resistem como lugar onde é possível encontrar bons produtos a preços razoáveis
Entre milhares de livros, quatro pessoas perambulam em busca de algum exemplar que lhes chame a atenção. Enquanto uma menina folheia revistas em quadrinhos, uma mulher já adulta passa os olhos por livros sobre gestão empresarial. Na outra ponta do estabelecimento, dois senhores idosos observam calmamente as prateleiras referentes à filosofia escolástica e moderna. O olhar atento e focado dos quatro curiosos revela uma paixão unívoca: a leitura. Já o cheiro característico do mofo de livros esperando por décadas para serem escolhidos revela onde eles estão: em um sebo.
Reuber Gerbassi, professor de filosofia da UFRJ, tem 60 anos e já é cliente fiel de sebos há 40. “Vir aqui é como vir a um templo, a um espaço sagrado”, afirma ele, que, desde a sua segunda graduação, em 1984, é um assíduo frequentador de sebos, onde vai a de todo tipo de literatura. Para Gerbassi, sebos são espaços para interdisciplinaridade e descobrimento. Ele confirma que, uma vez diante das estantes infindáveis de livros, o leitor é instigado a buscar por aquilo que talvez não consideraria em primeiro lugar. Pela sua experiência, ele garante que é quase impossível sair daquele universo literário sem levar consigo alguns exemplares. E foi isso que ele fez, ao visitar o Sebo Beta Aquarius, no bairro do Catete, e levar consigo quatro livros para ler no fim de semana.
Um dos sebos mais visitados da cidade do Rio, o Beta Aquarius já conta com 25 anos de existência, contemplando um acervo com mais de 10 mil livros, convidativos para todos os públicos. Com seções que vão de gibis da Marvel e da DC até clássicos da Grécia Antiga, como “A Odisseia”, de Homero, os clientes deparam-se com uma miríade de possibilidades. Desde sua inauguração, em 1999, o sebo vem operando praticamente de forma ininterrupta, com um acervo de livros novos e usados que é constantemente atualizado.
Segundo Ana Maria Albernaz, uma das donas do Beta Aquarius, a troca com o público é um aspecto fundamental na trajetória do estabelecimento. “Não são só os títulos, autores, edições e o conteúdo que tornam um livro relevante, mas também o que representam para os seus leitores. Compreendemos seu amor pelos livros, o prazer do encontro e a promessa da leitura”, diz a livreira, que destaca que as conversas com os clientes no balcão são tão ricas que ajudaram a criar a identidade literária e estética da loja. Para Ana, dividir a paixão pela leitura com os visitantes da loja é o que torna seu trabalho tão gratificante.
Virando a página da pandemia
Na esquina da movimentada Rua das Flores, na Tijuca, zona norte da cidade, outro sebo marca seu território por décadas. Inaugurado em 1987, o Sebo das Flores é um negócio de família gerido pelos irmãos Italo e Lucas Domingues. Eles estão no comando do estabelecimento criado pelos pais, Júlio e Janine, desde 2020, em plena pandemia da Covid-19, momento em que gerir um negócio e seus consequentes prejuízos foi algo bastante desafiador para os irmãos.
O sebo tijucano não foi um caso isolado, já que todo o setor de livrarias foi fortemente afetado no período pandêmico. Conforme informou o presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL), Bernardo Gurbanov, ao portal Correio Popular, a queda estimada da venda de livros em sebos e livrarias foi de 80% no primeiro semestre de 2020. Segundo Italo, essa situação foi amenizada pelo fato do sebo estar localizado na calçada, o que permite um contato maior com os transeuntes. “Como o sebo fica aqui na praça, um espaço aberto, o povo vem, fica, bebe um café e depois acaba virando cliente para vida toda e, alguns, até meus amigos.”
Mesmo com o surgimento da Estante Virtual, plataforma on-line que comporta mais de 2.600 sebos e livrarias de todo o Brasil, Italo defende que a clientela gerada por meio do “boca a boca” é ainda o principal sustento do seu comércio. Segundo ele, foi graças aos consumidores fieis que o Sebo das Flores conseguiu atravessar e superar a pandemia. “Para além da preservação e circulação de conhecimento, um sebo também é importante por estimular um consumo mais consciente de mercadorias”, diz o livreiro, que defende que as práticas da reutilização e do comércio circular deveriam ser aplicadas a diversos produtos e adotadas por mais pessoas, tendo em vista ações mais sustentáveis.
Achados do túnel do tempo
A Livraria Berinjela, sebo localizado na Avenida Rio Branco, no Centro, já existe há 30 anos e atualmente está sob gerência de Daniel Chomsky. Localizado próximo ao Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, o perfil principal do público da loja é, historicamente, o de estudantes e ex-estudantes universitários. Chomsky relata que o público se renova, com as novas gerações de universitários comparecendo ao sebo, mas as antigas se mantêm frequentadoras.
Para além da literatura, a Livraria Berinjela também tem um grande destaque no trabalho com discos, vinis e CDs antigos. A partir dessa oferta, constitui-se uma outra parcela também importante do público do sebo, interessada na compra e na venda de artigos musicais antigos, já não mais encontrados em circulação no mercado.
Assim como no Sebo das Flores e no Beta Aquarius, o acervo da Livraria Berinjela é principalmente oriundo de trocas particulares com pessoas interessadas em vender seus estoques literários. Embora também sejam feitas divulgações nas redes sociais, aplicativos e jornais, a relação direta com um público amante da literatura ainda é a fonte principal dos estoques desses sebos. “O grande diferencial de um sebo para uma livraria é o público. O universo dos livros usados é imensamente maior do que o de uma livraria de livros novos”, diz Chomsky.
Sebos do Rio
O Rio de Janeiro é a segunda cidade com mais sebos do Brasil, perdendo somente para São Paulo. Um levantamento feito pelo Rampas com dados da plataforma Google Maps indica que o município conta com cerca de 60 sebos, incluindo estabelecimentos e barracas, sendo o Centro a região com a maior concentração desse tipo de comércio. Apesar da crise do varejo livreiro, que, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) fechou cerca de 1000 livrarias só no Rio de Janeiro na década passada, os sebos ainda resistem às crises do mercado.
Mapa com alguns dos principais sebos do Rio de Janeiro. Criado no Google My Maps.
Relíquias preservadas
Os sebos cumprem diversos papéis no universo livreiro. A proeminência deles na preservação de edições de livros que não são mais publicadas ou de revistas que já não estão em circulação é notável. Chomsky, da Livraria Berinjela, comenta que parte significativa do acervo de seu negócio é composto por textos que não mais são publicados. Além disso, esses estabelecimentos podem ser um verdadeiro relicário para interessados em exemplares únicos. Livros autografados por Zico e Ortega y Gasset já ocuparam as prateleiras do Sebo das Flores, por exemplo
Outro aspecto importante dos sebos é a democratização do acesso à leitura. Segundo pesquisa do Nielsen BookData de 2023, somente 16% da população brasileira compra livros anualmente – e uma das razões para o fenômeno é o preço dos artigos literários. Segundo levantamento do Painel do Varejo de Livros do Brasil, o valor médio de um livro está em R$ 54,50 e com tendência de aumento. Ao passo que exemplares em boa qualidade custam em média 20 reais em sebos, os mesmos títulos são encontrados pelo dobro desse valor em livrarias ou lojas virtuais.
A faixa de preços acessível faz dos sebos as opções mais rentáveis para o consumo literário e permite um maior estímulo ao mundo da leitura. “As bibliotecas dos sebos estão à disposição tanto como porta de entrada a iniciantes do universo literário, quanto a leitores já experientes, donos de acervos literários imensos, e tudo por um excelente preço”, comenta a proprietária do Beta Aquarius, que não é a única a defender o cunho democrático desses espaços que, há décadas, permanecem abertos para todos.
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